quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Memorabilia

 


The Cluttered Attic by Steve Crisp

Há umas palavras que lemos primeiro em outra língua, em geral inglês, e depois descobrimos que também existem em português. Memorabilia (lê-se memorábilia) é uma delas. Pode significar uma coleção de objetos relacionados com um tema, como um time de futebol ou uma banda de música, por exemplo "memorabilia dos Beatles", ou simplesmente fatos ou coisas que suscitam lembranças. 

Há algum tempo, inspirada por um amigo português que reencontrei depois de quatro décadas, que falou em "Idéias Peregrinas", comecei a compilar um dicionário de palavras e frases da minha infância. Comecei devagar, pelas idéias peregrinas, e a coisa foi crescendo. Atualmente o dicionário tem 31 páginas e mais de mil entradas, e tenho ainda uma lista interminável de palavras e frases que ainda preciso de incluir nele.

Formei um grupo de Whatsapp com os meus cinco irmãos para irmos guardando lá as palavras de que nos formos lembrando. Às vezes damos boas risadas. De vez em quando aparece uma palavra ou frase de que só um de nós se lembra. Os mais prolíficos nessas palavras desirmanadas são o irmão mais velho e o mais novo, como é de se esperar. Não só eles são "mais loucos do que trinta cabras", mas também são o que começou primeiro, e o último a conviver com os nossos pais, depois dos outros saírem de casa. Inicialmente o dicionário era mais de expressões lá de Portugal, mas depois fomos incluindo algumas também do Brasil, que foram sendo incorporadas ao folclore da família.

Segue uma seleção de algumas de palavras ou frases pinçadas no dicionário da família. Espero que gostem.

  • Abichar: obter alguma coisa através de ardil
  • Bota-de-elástico: uma pessoa antiquada e um pouco ridícula
  • Coca-bichinhos: pessoa que se ocupa com coisas miúdas
  • Desarrincanço: uma solução genial para algum problema
  • Estafermo: pessoa de mau caráter
  • Fosquinhas, fazer: fazer gracinhas
  • Gaifonas, fazer: fazer caretas acompanhadas de gestos exagerados
  • Herodes para Pilatos, andar de: ter que ir a muitos lugares diferentes para resolver alguma coisa
  • Ideias peregrinas: ideias mirabolantes, que vão e voltam
  • Javardo: pessoa que não tem bons modos à mesa
  • Limpar as mãos à parede: conclusão de um serviço muito mal feito: “podes limpar as mãos à parede!”
  • Mata-cavalos, ir a: muito depressa
  • Nem o pai morre, nem a gente almoça: quando uma situação não ata nem desata
  • Olhos de carneiro mal morto: olhos semicerrados
  • Peúgas desirmanadas: meias desemparceiradas
  • Quando o rei faz anos: muito raramente
  • Rabiobeque: ornamento desnecessário
  • Sarilho, ou “bonito sarilho”: complicação, problema quase insolúvel
  • Tagaté: brincadeira para estimular uma criança pequena: "fazer tagatés"
  • Urso!  malcriado
  • Vê lá se te caem os parentes na lama! quando alguém não quer fazer um trabalho por ser humilhante
  • Xeque-morango: uma regra inventada na hora para ganhar um jogo que já estava perdido
  • Zurrapa: comida ou bebida muito ruim

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Autorretrato

 

Eu, por mim mesma


Um ano e alguns meses de pandemia. Vidas destruídas, sonhos vencidos, tristeza infinita. Ontem vi o retrato de uma mulher parecida comigo flutuando no fundo do Jornal Nacional, no meio dos mortos pela COVID-19. Vi também um morador de rua que se parecia com um dos meus irmãos. Ele ainda dormia, deixei um kit de higiene perto dele. Espero que tenha ajudado a tornar o dia dele um pouco melhor.

Dizem que o sentimento que se alastra nas nossas vidas enquanto a pandemia se arrasta chama-se definhar. Eu vejo uma sequência de sentimentos horríveis, todos com D:
  • Desalento
  • Desconsolo
  • Desespero
  • Devastação
  • Depressão
Definhar parece pouco para o que estamos todos passando.


sábado, 10 de abril de 2021

O Alfabeto do Desespero

Saul Steinberg, 1960
Saul Steinberg, 1960



Há uns dias li um alfabeto da pandemia, feito por um leitor de um jornal em inglês. Não me saiu mais da cabeça, por isso resolvi fazer a minha própria versão, em português:

Assombro, com tudo isso que estamos passando

Bebidas alcoólicas, para tentar aliviar a dor

Coronavírus, o maldito

Desalento, porque não vemos o fim desse pesadelo

Estarrecedor, o noticiário diário

Fome... o assassino silencioso invadindo cada vez mais casas de família

Gritos silenciosos dos entubados

Horas que custam a passar

Indescritível dor dos que ficaram

Jamais teremos que passar por isso novamente - esperança!

Liberdade perdida... pelo menos por quem tem responsabilidade

Madrugadas em claro, pensando no dia seguinte

Negacionismo, a arma dos impotentes

Obrigações, que devem ser cumpridas, cada vez mais

Pandemia, a palavra do ano, da década, do século...

Quarentena nossa de cada dia

Reinfecção, antes uma possibilidade, agora uma certeza

Sintomas, sintomas, estranhos sintomas

Tragédia, cada vez mais presente

Último ano, em que vivemos um pesadelo gigante

Viagens adiadas ou canceladas

Xenofobia, mais um efeito colateral da virose

Zoom, o aplicativo, que quase virou sinônimo de teleconferência

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Pequenas gentilezas

Saul Steinberg, 1970


Estamos todos cansados de doenças, mortes, e também de teorias da conspiração, que seriam até engraçadas se não levassem a resultados tétricos. O homem que se explodiu em Nashville (EUA) no Natal do ano passado acreditava em alienígenas reptilianos que assumiam forma humana para se infiltrar entre nós, teoria que talvez tenha levado aos jacarés da vacina.
Pequenos gestos de gentileza, por outro lado, mesmo sem maiores impactos na situação do planeta, trazem alívio e conforto. Tenho procurado ser mais gentil com as pessoas, o que me faz muito bem.  Tenho também presenciado muitos gestos de gentileza que me surpreenderam e aqueceram o coração. Espero com isto inspirar alguém, mesmo que seja a mim mesma, a tentar praticar um pequeno gesto de gentileza todos os dias. Segue a minha lista, pequenina e incompleta:
  • A empregada do mercado escolhendo limões para entrega na casa de algum perfeito estranho, com todo o cuidado, como se fossem para ela;
  • O morador de rua que cumprimenta meu marido todas as manhãs;
  • O entregador que se ofereceu para levar as minhas compras no carrinho dele;
  • O colega que guardou a minha bicicleta, alugada, que eu tinha deixado solta porque não havia lugar vago para ela;
  • Pessoas que seguram a porta, pedem desculpas quando esbarram em você, abrem passagem no corredor do supermercado;
  • Pessoas que conseguem sorrir com os olhos, para compensar a máscara.



quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Tristeza infinita


Saul Steinberg  - New Yorker, 1975

Uma das coisas que mais me entristeceram durante a pandemia, entre mil outras, foi o dia que eu dei uma gargalhada e o Sr. C. disse que há meses não ouvia a minha risada.

Tudo passa... mas algumas coisas deixam marcas para sempre. Penso, logo resisto... tento resistir à tentação de desistir de tudo. E procuro pensar que vou voltar a rir.