segunda-feira, 23 de março de 2020

É o Medo, meu Pequeno Caçador, é o Medo

23/03/2020
Saul Steinberg, 1960

Bem leve, pela selva, corre essa sombra muito atenta,
E o suspiro se espalha e se alastra em toda parte,
E o suor em sua testa, pois ele passou agora mesmo...
É o medo, ó Pequeno Caçador, é o medo!
Rudyard Kipling, em tradução de Alexandre Barbosa da Costa

C’est la peur, mon petit chasseur, c’est la peur... meu pai me dizia isso, assim, em francês mesmo, quando percebia que eu estava apavorada com alguma coisa. Era uma forma de ele me dizer que entendia como eu estava me sentindo, e isso era de certa forma tranquilizador. Era como um código entre nós dois, mostrava que ele entendia o que eu estava passando, mesmo não podendo fazer nada quanto à causa desse medo.
Daqui a alguns anos, se sobrevivermos, a nossa vida vai ser dividida em antes e depois da Covid19. Ainda não sabemos o impacto que esta doença vai ter nas nossas vidas. Vamos ficar doentes? Morrer? Perder algum parente ou amigo? Sobreviver, mas perder o ganha-pão?
A pandemia tem nos mostrado o pior e o melhor dos seres humanos. Compras compulsivas, corrida às farmácias, boataria, contrastam com atitudes bonitas, iniciativas solidárias, as pessoas se organizando para ajudar umas às outras.
Não se sabe de onde veio a ideia de que poderia faltar papel higiênico, mas no mundo inteiro houve corrida aos supermercados para comprar pacotes e mais pacotes, até no Brasil, mesmo antes da epidemia nos atingir em cheio. A rebelião dos velhinhos, que se recusam a ficar em casa, também se repete em vários países. Usar máscaras cirúrgicas indiscriminadamente, sem nenhuma real utilidade, parece ser outro padrão de comportamento. Mais uma vez, nesta crise, lembro-me das palavras do meu pai, quando acontecia alguma coisa que eu achava inusitada: “os seres humanos não mudam nada”. Espero que ele estivesse enganado, e que desta vez nós tenhamos a capacidade de aprender alguma coisa.

P.S. (de 23/05/2020): depois de eu ter publicado este texto, as máscaras revelaram-se úteis, e tornaram-se até obrigatórias em lugares públicos. Ainda não faltou papel higiênico.