terça-feira, 28 de abril de 2020

Festas macabras e ursinhos fofos

Cabeças em estacas - fonte: wikipedia 

Quando acabaram os tempos do Terror, depois da Revolução Francesa, alguns parentes de pessoas que haviam sido guilhotinadas passaram a organizar os chamados "Bals des Victimes". Eram bailes em que as pessoas se fantasiavam de guilhotinados, usando cabelos curtos, xales e gargantilhas vermelhas, entre outros adereços macabros. Há historiadores que não acreditam na veracidade desses bailes, dizem que foi uma invenção posterior: Fake News do século XIX. Lembrei-me desses bailes ao ler que andam organizando festas clandestinas durante a pandemia, e em algumas até distribuem máscaras cirúrgicas engraçadinhas aos convidados. Como disse alguém, o que aprendemos com a história é que nada se aprende com a história.


Um destes dias recebi uma figura de um ursinho fofo fazendo um coração com as patas/mãos. Achei a coisa mais piegas do mundo, e fiz uma anotação mental de nunca mandar uma figura dessas para ninguém. Fazer "figura de urso", em Portugal, quer dizer passar vergonha. Dias depois, ao receber notícias tristes, para as quais não havia resposta possível, o que eu fiz? Mandei o ursinho. Depois disso já mandei a ilustração do ursinho para várias pessoas. Neste mundo de cabeça para baixo precisamos de mais ursinhos fofos e de menos arrogância intelectual. Espero que quando esta pandemia passar, os ursinhos fofos permaneçam entre nós e se espalhem, trazendo mais cordialidade e unindo as pessoas.


Foto de Ivan Radic “Lonely teddy bear looking through the window”

Shot on Nikon D610 and Nikon 85mm F1.4G

segunda-feira, 20 de abril de 2020

O que não ler durante a quarentena

O Bibliotecário - Giuseppe Arcimboldo (1566)

Tenho lido muitas sugestões sobre o que fazer durante estes tempos de reclusão. Ler é uma solução óbvia. Pessoalmente não tenho tido muitos problemas: entre tentar trabalhar, cuidar da casa e da família, e o bombardeio de notícias e análises sobre a própria pandemia, quase não tem sobrado tempo para a literatura. Antes das coisas se agravarem, eu tinha começado a reler um livro que para mim é o clássico dos clássicos, "Crime e Castigo", mas acabei largando porque é muito sombrio e ia acabar me deixando mais triste do que já estou, se é que isso é possível. Então, para prestar um serviço aos meus leitores, decidi elaborar uma lista de livros para não ler agora. São livros excelentes, não me entendam mal, recomendo que os leiam algum dia.
  1. Crime e castigo (Dostoievski) - a história de um rapaz que mata uma velha usurária para hipoteticamente poder estudar e trabalhar em prol da humanidade, obviamente não é uma leitura apropriada para estes tempos da pandemia que está dizimando os idosos.
  2. A Montanha Mágica (Thomas Mann) - trata de um jovem que vai visitar um primo em um sanatório para tuberculosos e acaba adiando a sua volta indefinidamente... não preciso explicar mais, não é?
  3. Os Buddenbrooks (Thomas Mann) - A saga de uma família alemã, atravessando várias gerações. Contém uma descrição terrível de uma morte por pneumonia. Não, não, não.
  4. Querida Doença (Patricia Highsmith) - o título já diz tudo... a doença é mental, mas mesmo assim não recomendo que ninguém leia esse livro agora.
  5. Viagem ao Fim da Noite (Céline) - a obra prima de um dos grandes escritores franceses do século XX é negativa demais para estes tempos de pandemia. Céline foi um personagem controverso, por suas posições antissemitas e ligação ambígua com o nazismo. Curiosamente, o seu trabalho de conclusão do curso de Medicina foi sobre o médico húngaro que descobriu que lavar as mãos era a melhor forma de evitar a “febre puerperal”
  6. Moby Dick (Melville) - a história do baleeiro Pequod e do capitão Ahab, um louco obcecado pela vingança que leva a sua tripulação à destruição e morte, não é uma leitura leve para distrair durante uma pandemia.
  7. A Grama está Cantando (Doris Lessing) - o primeiro romance dessa grande escritora, que chegou a ganhar um prêmio Nobel, trata de sonhos não realizados, depressão, racismo e violência. Motivos suficientes para não ler esse livro agora.
  8. Os Noivos (Manzoni) - um dos clássicos da literatura italiana, foi bastante lembrado recentemente na Itália por conter a descrição de uma peste que atingiu Milão em 1630. É um romance empolgante, fácil de devorar, mas talvez nãos seja a hora de ler histórias de peste e clausura.


domingo, 5 de abril de 2020

Querida Filipa (carta para mim mesma)

(Desenho de Saul Steinberg, 1967)

Rio de Janeiro, 5 de Abril de 2020

Querida Filipa de amanhã:

Espero que releias este texto daqui a alguns anos com saúde e cercada por toda a tua família.  A atual pandemia faz coisas estranhas conosco, e esta carta é uma prova disso. Espero que tudo passe mais depressa do que se está prevendo e que te possas lembrar com orgulho das coisas que fizeste durante este período sombrio.

Chegando à janela, já em tempos de pandemia, viste dois pombos mortos, atropelados, no meio da rua. Os coitadinhos deviam estar com fome, as pessoas que os alimentavam pararam de sair de casa, e com a rua vazia eles aventuraram-se demais e acabaram atropelados. Viste também um morcego morto na calçada (será que a morte dele tinha algo a ver com o vírus?), e um gatinho preto com os pelos todos arrepiados, assustado e com fome. Os animais são nossas sentinelas e avisam-nos das tragédias iminentes, é só prestar atenção.

Espero que não tenhas que te arrepender de decisões tomadas durante estes tempos de incerteza. São decisões difíceis para todos. Lembra-te que tentaste fazer tudo de maneira ponderada, e que ninguém podia prever o desfecho de tudo. Procuraste ser uma boa pessoa, generosa com pessoas desconhecidas, e também com as mais difíceis: as mais próximas de ti.

Perdoa-te e segue em frente.
Filipa de 2020

P.S.: Uns dias depois de escrever esta carta, vi um filhote de gambá morto, deitado de costas, muito direitinho, como se estivesse preparado para o funeral.
P.P.S.: Eu não saía de casa, a não ser por extrema necessidade. Avistei esses animais da janela, e nas poucas vezes em que precisei de sair para acudir a uma pessoa de idade,