domingo, 5 de abril de 2020

Querida Filipa (carta para mim mesma)

(Desenho de Saul Steinberg, 1967)

Rio de Janeiro, 5 de Abril de 2020

Querida Filipa de amanhã:

Espero que releias este texto daqui a alguns anos com saúde e cercada por toda a tua família.  A atual pandemia faz coisas estranhas conosco, e esta carta é uma prova disso. Espero que tudo passe mais depressa do que se está prevendo e que te possas lembrar com orgulho das coisas que fizeste durante este período sombrio.

Chegando à janela, já em tempos de pandemia, viste dois pombos mortos, atropelados, no meio da rua. Os coitadinhos deviam estar com fome, as pessoas que os alimentavam pararam de sair de casa, e com a rua vazia eles aventuraram-se demais e acabaram atropelados. Viste também um morcego morto na calçada (será que a morte dele tinha algo a ver com o vírus?), e um gatinho preto com os pelos todos arrepiados, assustado e com fome. Os animais são nossas sentinelas e avisam-nos das tragédias iminentes, é só prestar atenção.

Espero que não tenhas que te arrepender de decisões tomadas durante estes tempos de incerteza. São decisões difíceis para todos. Lembra-te que tentaste fazer tudo de maneira ponderada, e que ninguém podia prever o desfecho de tudo. Procuraste ser uma boa pessoa, generosa com pessoas desconhecidas, e também com as mais difíceis: as mais próximas de ti.

Perdoa-te e segue em frente.
Filipa de 2020

P.S.: Uns dias depois de escrever esta carta, vi um filhote de gambá morto, deitado de costas, muito direitinho, como se estivesse preparado para o funeral.
P.P.S.: Eu não saía de casa, a não ser por extrema necessidade. Avistei esses animais da janela, e nas poucas vezes em que precisei de sair para acudir a uma pessoa de idade,

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