segunda-feira, 3 de março de 2025

A grande dor das cousas que passaram

O meu pai com dois aninhos incompletos

A melancolia das lembranças quebradas. Recentemente os meus irmãos e eu começamos a tarefa dificílima de esvaziar o apartamento onde moramos alguns dos anos mais importantes das nossas vidas. Uma das lembranças que eu tenho de lá foi a minha festa de 28 anos, quando eu tinha um tumor na mama e estava de cirurgia marcada para retirá-lo. Fiz uma festa como se não houvesse amanhã, literalmente.

Cada um de nós tem lembranças diferentes desse apartamento, muitas delas dolorosas. Encontrei uma foto do meu pai bebê, com uns dois anos, em uma moldura que já foi linda mas que hoje está suja e quebrada. O que faço com isso? Não sei. Não quero a foto nem a moldura, já tenho vários porta-retratos quebrados aqui em casa, dos quais não tenho coragem de me desfazer, mas não consigo jogar esse no lixo.

Os irmãos e eu estamos pisando em ovos, tentando não começar a III Guerra Mundial por causa desses cacarecos, mas é impossível não discordarmos de nada. É uma carga imensa de lembranças, nem todas agradáveis. 

Nada como recorrer aos poetas para entender os sentimentos que nos atormentam:

Camões, "A grande dor das cousas que passaram"
 
Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor somente.
 
Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.
 
Errei todo o discurso dos meus anos;
Dei causa a que a fortuna castigasse
As minhas mais fundadas esperanças.
 
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Gênio de vinganças!

Carlos Drummond de Andrade, "A grande dor das cousas que passaram"

 A grande dor das cousas que passaram
transmutou-se em finíssimo prazer
quando, entre fotos mil que se esgarçavam,
tive a fortuna e graça de te ver.
 
Os beijos e amavios que se amavam,
descuidados de teu e meu querer,
outra vez reflorindo, esvoaçaram
em orvalhada luz de amanhecer.
 
Ó bendito passado que era atroz,
e gozoso hoje terno se apresenta
e faz vibrar de novo a minha voz
 
para exaltar o redivivo amor
que de memória-imagem se alimenta
e em doçura converte o próprio horror!


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